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Estereótipo e a folclorização do indígena no imaginário brasileiro

Desde o primeiro contato com os portugueses na costa brasileira, em 1500, o indígena passou a ser representado em imagens na Europa para concretizar o fascínio secreto da alteridade -- tornar conhecível o Outro considerado selvagem, incivilizado e exótico. No entanto, ao mesmo tempo em que o consumo de imagens do chamado “primitivo” se tornou recorrente, os discursos a esse respeito ultrapassaram séculos de contato entre índios e não índios, gerando estereótipos que condenam ou folclorizam o indígena e suas expressões socioculturais.

 

A veiculação dessas representações, isto é, a reprodução de imagens que produzem significados e que geram, nesse sentido, sentimentos baseados no senso comum nos leitores que as consomem (HALL, 2016, p. 140) mantêm uma lógica dominante de estigmatização e negação de direitos das populações autóctones saqueadas pelos ditos "civilizados". É a partir disso que questiona-se, no intuito de saber as consequências desses regimes de representações para a vida dos povos indígenas: em qual momento histórico a veiculação de imagens indígenas surgiu? Na atualidade, o aparecimento dessas imagens tem alguma relação com aquelas veiculadas no passado? Quais os interesses por trás dessas imagens ou a quem interessa a folclorização e estereótipos do indigena e a permanência de imagens do passado?

 

Rebater o discurso apresentado pelos grupos dominantes -- existentes tanto no âmbito do Estado, como no Congresso Nacional com a bancada do agrobusiness e religiosa, quanto pelos grandes grupos do capital, oriundos da esfera privada, mas que mantém relações estreitas com o Estado -- é um meio pelo qual se busca garantir o reconhecimento e o respeito aos povos indígenas que há mais de cinco séculos ressignificam suas expressões socioculturais, afirmando suas identidades indígenas, e que, mobilizados, continuam lutando pelas reivindicações de seus direitos constitucionais, ainda que reiteradas vezes ocorram as violências simbólicas e físicas por parte daqueles que deveriam resguardá-los, como versa a Constituição Federal. (Art. 231 e 232 CF/1988).

Os discursos do passado e do presente se cruzam

Os primeiros discursos sobre os indígenas surgiram logo após o relato de Pero Vaz de Caminha na irônica descoberta "por acaso" e "acidental" do Brasil, que, segundo Oliveira (2016, p. 46-47), abriu brechas para o exotismo: o novo mundo que se encontrara fora da Europa! Ainda no período colonial, por meio de crônicas, relatos de viagens, cartas e tratados, as imagens e narrativas sobre os “povos primeiros” foram reiteradas, como no precursor livro Duas viagens ao Brasil (1557), do alemão Hans Staden, considerado a primeira obra escrita sobre o Brasil, e cuja narrativa gerou grande repercussão na Europa por o autor relatar a suposta história que viveu em meio a um povo "canibal", "bárbaro", "selvagem" e "incivilizado": os Tupinambá. 

 

Cabe destacar que muitas dessas narrativas e imagens bastante conhecidas no século XVI são, em sua grande maioria, resultados de releituras de documentos e relatos coloniais: alguém que fazia o relato, outra que escrevia, um que traduzia zia e, por fim, alguém que desenhava. As imagens e narrativas sobre a suposta selvageria, incivilidade e barbárie eram recorrentes nos trabalhos de Theodore de Bry (1592), belga cuja principal obra retratou o ritual antropofágico Tupinambá, baseado na obra de Staden; Johannes Stradanus, por meio de America (1530); Albert Eckhout, na obra Mulher Tapuia (1641) dentre tantas outras daquele período.

 

No século XIX, na busca pela construção de uma identidade nacional, a temática indígena e o significado inerente do período anterior foi retomada, como evidenciou Edson Silva: “Também os diversos grupos étnicos são chamados de tribos e, assim, pensados como primitivos, atrasados, ou ainda imortalizados pela literatura romântica do século XIX, como nos livros de José de Alencar, nos quais são apresentados índios belos e ingênuos ou valentes guerreiros e ameaçadores canibais, ou seja, bárbaros, bons selvagens ou heróis”. 

 

Ao longo dos anos essas imagens e discursos foram reproduzidos nos livros didáticos sem um amplo debate e olhar crítico (FERREIRA, 2016 apud SILVA e SILVA, 2016, p. 113). Consequentemente, essas imagens foram cristalizadas nos imaginários dos leitores, favorecendo uma estreita vinculação entre os relatos dos cronistas com as imagens de agora acionadas, que, muitas vezes, encontram espaço e grande acolhimento em outros meios de produção de significados, como, por exemplo, a mídia.

 

Na atualidade, a escola -- enquanto local de formação humanística, ética, social e política -- e os meios de comunicação de massa -- com sua função educadora e socializadora -- seriam os atores primordiais para desmistificação e superação de equívocos, preconceitos e desinformações. Entretanto, quando a escola, por meio de práticas de educação, folcloriza o indígena e o reduz a atributos inerentes à sua forma de vida (usar cocar, pintar-se, etc), ela reproduz ou favorece estereótipos e características essencializadas, deixando de agir como meio potencializador de mudança em uma sociedade pautada na negação dos direitos dos povos indígenas.

 

Sendo o Brasil, pois, um país constituído por várias vivências e expressões socioculturais, isto é, um país formado a partir de sociodiversidades, quando os meios de comunicação, principais responsáveis pela ligação entre o acontecimento no mundo e as imagens que as pessoas têm na cabeça acerca dos acontecimentos (TRAQUINA, 2005, p.15), deixam de representar criticamente essas experiências socioculturais, eles negam as sociodiversidades e mantém, assim, uma lógica de dominação sociopolítica de uma cultura sobre a outra.

 

Observa-se que o repertório da representação sobre o indígena não mudou, permanece o mesmo e vinculado a discursos do passado. As vozes presentes nos textos e imagens produzidos sobre o indígena projetam o invasor europeu e, consequentemente, seu discurso no presente; permanece, ainda, no imaginário brasileiro a ideia do índio exótico, nu e pintado, bárbaro e incivilizado, que usa cocar e vive na selva, desconhecendo ou omitindo situações de vivências indígenas em contextos urbanos. Passados mais de 500 anos de uma colonização pautada pela escravidão perseguição às crenças e expressões socioculturais, aniquilamento das línguas e miscigenação forçada, são veiculadas ainda hoje imagens que não correspondem ao modo de vida de grande parte dos mais de 300 povos indígenas brasileiros. No intuito de desvincular essas imagens e discursos retrógrados que não correspondem a essas populações, torna-se urgente a necessidade da leitura desses discursos tanto no âmbito da escola, quanto nos produtos culturais jornalísticos (notícias) veiculados pelos meios de comunicação de massa. Se a escola não faz a sua parte, a mídia, como meio socializador e produtor de significados, poderia fazer?

Referências:

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Apicuri, 2016.

 

OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: "pacificação", regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

 

SILVA, Edson; SILVA, Maria da Penha da. A temática indígena na sala de aula: reflexões para o ensino a partir da Lei 11.645/2008. 2ª ed. Recife, Edufpe, 2016.

 

TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. A tribo jornalística: uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis,: Insular, 2005.

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