A agricultura como expressão da identidade Xukuru do Ororubá
- Tarisson Nawa
- 6 de out. de 2019
- 10 min de leitura
Atualizado: 6 de jun. de 2020

Numa época em que o Agronegócio expande suas fronteiras na busca por boas estatísticas econômicas às pretensas de colocar o Brasil num cenário de produção internacional de destaque, por meio das produções de monoculturas em larga escala em grandes propriedades de terra, os povos e comunidades tradicionais acenam para outras formas de diálogo entre a produção de alimentos, a preservação do meio ambiente, a diversidade na produção, a resistência e afirmação identitária, o reforço à espiritualidade e o bem-estar da coletividade.
No que se refere aos indígenas, dos 305 povos existentes no Brasil – segundo censo do IBGE de 2010 -, diversas são as formas de estabelecer as relações com a terra e, desse modo, a produção de alimentos ganha significado que vai além da exploração e apropriação dos recursos terrenos para fins econômicos e mercadológicos, como pretende a lógica do capital.
O povo Xukuru, do Semiárido pernambucano (Pesqueira e Poção/PE), é um desses povos que estabelece a comunicação entre o meio ambiente e as relações socioculturais. Educação, gênero, juventude são umas das muitas áreas com as quais a agricultura do povo faz diálogo para fins de manutenção do “ser Xukuru”.
Histórico do povo e a relação com a agricultura
Após a extinção do aldeamento pela alegação de falta de Xukuru, em 1879, os indígenas viveram um processo de instabilidade com relação ao território antes ocupado. Se antes eles poderiam desenvolver suas atividades nos seus espaços de vivência, anterior a chegada do colonizador, agora estavam destinados a buscar outras formas de sobrevivência, o que implicava a assimilação do modo de viver à mão de obra local.
É por conta disso que, no final da década de 1970, em consequência da expansão do latifúndio, os indígenas passaram a se submeter ao trabalho assalariado nas fazendas localizadas na própria área indígena. Já no início dos anos 1980, ocorreram mudanças nas relações de trabalho entre agricultores indígenas e fazendeiros/posseiros, que culminaram na proibição dos índios de cultivarem produtos característicos de sua cultura alimentar, priorizando o plantio de capim para gado. Só no final dessa década é que as mobilizações em torno da retomada do território é estabelecida para que, em 2001, o território Xukuru fosse reconhecido e houvesse a possibilidade do resgate das práticas do povo: dentre esses modos de vida da etnia estava a relação do indígena com a meio ambiente e a utilização desses espaços para a promoção da agricultura coletiva, partindo de uma lógica dos saberes ancestrais.
Hoje, a produção agrícola dentro do povo Xukuru é a mais importante atividade econômica, seguida pela pecuária leiteira, o artesanato e o turismo religioso, segundo dados do Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho (LASAT – CPqAM/ Fiocruz).
Dada a importância das atividades da lavoura para os indígenas, Dona Zenilda Xukuru, 67 – uma das lideranças políticas e mãe do cacique – a enfatiza que a política do povo não pode ser pensada fora das relações estabelecidas com a agricultura. Os Xukuru programam seus projetos políticos a partir de instâncias de organização – como o grupo Jupago, composto por um conjunto de técnicos, a maioria deles indígenas, os quais pensam projetos no que se refere às práticas da agricultura para dentro da T.I (Terra Indígena) Xukuru.
Mas nem sempre a implementação de projetos foi possível, principalmente no período em que os posseiros se apropriaram do território indígena. A mãe dos Xukuru, como é conhecida Dona Zenilda, resgata bem esse período e destaca os desafios antes enfrentados pelos seus parentes. “Antes, a gente não tinha onde trabalhar. Se fosse trabalhar na terra que estava nas mãos deles, mesmo a terra sendo nossa, a gente tinha que rapidamente tirar as plantações pra eles soltarem o gado, ou então dividir o lucro com ele; [a gente] desmatava e plantava o capim, porque era obrigado. [...] Nós éramos escravos.”
Passado esse período, a mudança climática na região é, hoje, o principal problema enfrentado pelo povo para continuação das atividades na agricultura. “O desafio maior que nós temos hoje é a seca. Na minha época de criança, nosso inverno era prolongado e dava oportunidade pra nós plantarmos. [...] Muito desmatamento gera a falta de chuva pra nós plantarmos no tempo certo, mas nós continuamos persistindo”, destaca Dona Zenilda.
As três regiões em que o território Xukuru está dividido – Serra, Ribeira e Agreste – foi uma das formas de identificar os recursos hídricos no intuito de garantir que os indígenas continuassem com a produção da agricultura e a troca de saberes. Segundo Dona Zenilda, é por conta dessa divisão geográfica que “há a divisão da água. A gente tem a divisão dessa água da serra para a ribeira e pro Agreste”. Ela destaca ainda que o agricultor sente muita falta da água da chuva no tempo certo, mas a subsistência de muitos parentes dentro das aldeias tem partido de outras atividades no território, na saúde e na educação, com as quais a agricultura também estabelece relações.
Educação diferenciada e agricultura – um diálogo possível.
Após a constituição de 1988, o Brasil passou por uma série de mudanças no que se refere ao reconhecimento dos direitos negados a grupos invisibilizados; a educação comunitária, intercultural, bilíngue, específica e diferenciada para os povos indígenas foi um desses direitos garantidos. De lá para cá, os indígenas têm se articulado para a promoção de uma educação que respeite as especificidades do povo; e é por conta disso que se estabeleceu, com os encontros do Conselho de Professores Indígenas de Pernambuco (COPIPE), seis eixos (1. Terra; 2. Identidade; 3. Interculturalidade; 4. História; 5. Bilinguismo; 6. Organização), os quais norteiam a educação escolar dos povos do Estado de Pernambuco, sendo que cada povo estabelece as hierarquias para cada eixo. Mais recentemente, os eixos 7) Agricultura e 8) Espiritualidade foram acrescentados na orientação para a educação dos povos, destacando a importância das práticas e dos saberes de produção agrícola para a realidade dos indígenas da região.
Essa estrutura de pensar a agricultura dentro da educação escolar como fundamental às práticas e saberes do povo é detalhada por Eduardo Feitosa Xukuru, 27. Coordenador pedagógico de uma das escolas da Terra Indígena e representante da Copixo (Conselho de Professores Indígenas Xukuru do Ororubá), ele afirma que “em Xukuru, pelo fato de já termos uma prática efetiva da escola na relação com a terra, as crianças são levadas a aprender matemática a partir dos leirões (elevação de terra deixada pelo arado) e da produção agrícola que a comunidade produz. A partir dessa lógica, nós fomos entendendo a agricultura como um modo de vida, orientada pelos encantos e pelos saberes dos mais velhos. Compreendemos que se fazia necessário que a nossa escola tivesse como eixo não mais aqueles seis, mas oito; ou seja, a gente traz como proposta a agricultura como eixo norteador da educação Xukuru.”
a terra não era só um objeto a ser explorado; a terra é mãe! Se é mãe, a gente vai cuidar, vai zelar e proteger
Eduardo Xukuru
A preocupação com o uso consciente da terra no intuito de preserva-la para as gerações futuras é ênfase dada quando o debate é produção agrícola. O cuidado com a mãe natureza, Tamain – para os Xukuru –, foi o legado deixando pelas lideranças, o que é sempre relembrado pelo povo com muito orgulho. “Segundo Xicão (liderança Xukuru assassinado no período de retomada do território do povo), a terra não era só um objeto a ser explorado; a terra é mãe! Se é mãe, a gente vai cuidar, vai zelar e proteger. Tudo o que está em cima dela é elemento de força e poder”, declara Eduardo. Toda a cosmovisão sobre a agricultura e espiritualidade é transformada em uma educação que valoriza a realidade daqueles que vivem na aldeia. André continua: “nessa concepção, a gente vai trazendo a lógica que precisamos, enquanto escola indígena específica e diferenciada; vai trabalhando a realidade local com base nos mais velhos e na comunidade”.
Botar a mão na massa é a forma utilizada pelo povo para aplicação dos métodos de ensino com o objetivo de garantir uma melhor retenção daquilo que é ensinado sobre a história e situação atual do povo. “As aulas acontecem de forma interdisciplinar e, na maioria das vezes, na prática, no manuseio, no pegar e no pisar na terra. E ai a gente vai construindo a educação que nós queremos, mas não só uma educação como também uma agricultura que respeite nosso modo de vida. É a partir daí que vamos estabelecendo a escola como fortalecimento da prática de uma agricultura Xukuru”, finaliza o coordenador pedagógico.
A mulher nos espaços de produção da agricultura do povo
A preocupação com a questão de gênero dentro das relações sociais na agricultura e sua inerência com a tradição também é parte fundamental das questões dos indígenas. Mesmo enquanto sociedade tradicional, o povo se mostra sensível no que diz respeito ao lugar da mulher nos espaços de reflexão e atividade prática, e é por isso que muitas delas têm uma atuação fundamental dentro da lógica societária comunal.
Marciene Olegário, 21, conhecida como Marcinha Xukuru, é uma dessas mulheres. Jovem indígena e mãe, ênfase dada por ela, Marcinha fala de forma ávida que os espaços de atuação da mulher na agricultura não têm limites. “Em relação à agricultura, a mulher, dentro do nosso povo, sabe muito bem que seu espaço é onde é bem ela quiser. Então, se ela vai pra agricultura, se ela vai plantar, se ela vai colher, isso é uma decisão dela”.
A atuação de Marcinha dentro das instâncias de organização e política do povo é bastante voltada para o que ela chama de “ser Xukuru”, o que equivale ao fortalecimento e respeito à mata. Nesse sentido, é por meio da agricultura que se estabelece a relação com a floresta e a troca que essa relação proporciona. “Nós temos a agricultura não como a necessidade de plantar em uma grande quantidade de terra, mas a agricultura que eu vou regar e cuidar das plantas [...] – não só plantar muitas coisas e vender –, mas na troca: eu tenho uma planta, ela me dá sombra e comida, eu dou agua a ela”.
Olegário ainda acrescenta que o empoderamento da mulher dentro do povo passa pela ocupação dos espaços de decisão e que, atualmente, lideranças como Dona Zenilda têm desempenhado atividades importantes no reconhecimento da força da mulher. “Nós temos exemplos claros de mulheres dentro do nosso povo, que é Dona Zenilda. Nosso mandaru (guerreiro) [referência a Xicão] tombou na luta e ele foi plantado para que dele nasçam novos guerreiros, e Dona Zenilda deu continuidade na luta sem esse ‘negócio’ de que mulher não tem força.”
Marciene fala do aprendizado com as avós que, segundo ela, as mulheres de seu povo adquirem desde cedo. É por conta disso que considera sua matriarca, de quem aprendeu muitos dos conhecimentos sobre agricultura, a principal influência na manutenção da identidade do povo por meio do plantio na terra. Além disso, cita também Maria Coragem, a única “guerreira” do povo Xukuru que foi para a Guerra do Paraguai como exemplo de mulher e da força Xukuru.
As matas são os cabelos da terra; a água é o sangue; e as pedras, seus ossos
Cacique Xikão Xukuru
A força da juventude na promoção e manutenção da agricultura Xukuru
Durante o processo de retomada do território indígena em Pesqueira, na década de 1990, a juventude teve um papel de destaque. Após o assassinato do Cacique Xicão, Marcos Xukuru, seu filho, ainda com 22 anos, foi consagrado pelos encantados de luz ao cacicado. Ainda jovem, Marquinhos, como chama o povo, conseguiu mobilizar a juventude para desintrusão dos posseiros. A juventude daquela época agora ensina aos atuais jovens a força que eles têm e o respeito à mãe Tamain, entidade que representa a terra para a etnia.
Por conta disso, os indígenas de Pesqueira e Poção criaram a instância de organização da juventude chamada Apoyago Limolaigo, dentro da qual tenta-se articular os jovens para fortalecimento da cultura dentro do povo. Marciene Olegário reconhece que, antes do fortalecimento da cultura, é preciso ter em mente que a natureza é mãe. “Nesse sentido, a gente pensou no roçado coletivo de juventude onde esses jovens, depois de cultivar e colher, iam partilhar esses alimentos produzidos dentro da área que foi retomada; nós tanto reflorestamos como plantamos alimentos da agricultura Xukuru para nossa subsistência naquele local”.
As práticas no que tange à agricultura entre os jovens vêm tanto do processo de escolarização diferenciada como também da aproximação com os mais velhos, seja nos encontros promovidos pela Assembleia Xukuru, evento que ocorre uma vez no ano para fazer análise de conjuntura do povo; seja o Orubá Terra, encontro anual para partilha de sementes e experiências dentro da agricultura; seja nos encontros regulares de outras frentes de organização do povo, como os grupos e os rituais. A relação entre a juventude, os sábios, a espiritualidade e a agricultura também é destacada por Marcinha Xukuru. “No nosso povo nós temos os sábios que entendem e conversam com a natureza. Na virada do ano, na Aldeia Pedra D’água, nós passamos a noite juntos conversando. Em certo momento, na madrugada, a gente vai conversar com a natureza olhando a barra do ano. Dependendo de como a barra do ano vai estar, nós saberemos se no ano que vem vai ser ruim ou bom, se vai chover ou ser muito quente”.
O jovem Glaison, 21, faz coro juntamente com Marcinha e fala um pouco da sua experiência enquanto agricultor e a importância da sua geração para o povo. “Os jovens precisam entender que a agricultura não vem de agora, onde seu pai passou pra você, mas que seu bisavô já havia passado para o seu avô todas essas experiências”. Um dos objetivos do jovem agricultor Xukuru é passar esses conhecimentos para a futura família e não deixar a prática da agricultura acabar. Segundo ele, a agricultura tem um papel fundamental dentro do Xukuru. “Ela se concilia com a cultura, com a espiritualidade, com o conhecimento da natureza, com o saber do tempo – qual é a hora certa de plantar, a hora certa de colher”. Mas não basta ter somente esses atributos, continua: “é preciso ter conhecimento da barra do ano, quando a cigarra canta, quando a formiga começa a carregar as folhas – essas situações ajudam a fortalecer a nossa agricultura, contribuindo para o conhecimento com o qual já somos familiarizados.”
Para vislumbre de futuro, a juventude espera melhorias para além dessas já estabelecidas com a organização sistemática do povo. E mais coisas virão. Na T.I Xukuru está sendo projetada a Casa de Sementes, espaço não só para armazenamento da produção de dentro do território indígena, mas para capacitação e formação da juventude, no intuito de manter as práticas socioculturais de valorização da mãe natureza, o bem-estar da coletividade, o diálogo com os sábios e o reforço com a espiritualidade e “ser Xukuru”, tudo isso por meio da agricultura.



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