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Indígenas em contexto urbano no Recife

  • Foto do escritor: Tarisson Nawa
    Tarisson Nawa
  • 6 de out. de 2019
  • 10 min de leitura

Atualizado: 25 de nov. de 2019

Considerada há muitos anos o oásis para grupos empobrecidos, as metrópoles se tornaram o local de esperança com maior oferta de trabalho e possibilidades de estudo. Povos originários são um dos grupos que abraçam o imaginário da cidade como lugar de conforto ou que foram forçados a migrar para ela devido a violências. Os indígenas enfrentam dificuldades de adaptação, preconceito, racismo e acesso a serviços básicos, como contam para a reportagem especial.

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As cidades são consideradas o símbolo do desenvolvimento do Ocidente e da modernidade. É a partir dessa percepção que grupos se deslocam do interior para as metrópoles com o objetivo de superarem a condição de empobrecimento. A migração de indivíduos do "norte" geográfico para o "sul" é só uma das demonstrações da esperança carregada por pessoas que tentam uma nova vida, em diásporas dentro do Brasil. Hoje, nas capitais vivem muitos migrantes que se deslocaram do interior do estado em busca de sobrevivência: os povos indígenas são um desses grupos. Invisíveis, eles compõem a massa amorfa da população que transitam entre os prédios.


Em cidades como o Recife vivem mais de três mil indígenas de diferentes povos de Pernambuco, de acordo com dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. A reportagem conversou com indivíduos dos povos nativos Macuxi (RR) - ver vídeo -, Fulni-ô (PE) e Xukuru do Ororubá (PE) para compreender as experiências dos indígenas na cidade e os enfrentamentos de vivência o contexto urbano.


Em 1978, estudos do sociólogo Roberto Cardoso de Oliveira já analisava o fenômeno da migração de indígenas para as cidades brasileiras. Anos após o estudo de Oliveira, Stephen Baines, em outra pesquisa, alerta que os índios que moravam em cidades somavam 40.000 mil pessoas, o que equivalia a 10% da população indígena total do Brasil. O último cálculo, feito em 2010 pelo Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), contabilizava 324.834 índios vivendo em cidades: 36% da população nativa do Brasil. Hoje, há uma grande probabilidade desse número ter aumentado consideravelmente. A próxima contagem acontecerá em 2020, com a divulgação do próximo Censo.


A cidade brasileira com o maior número de habitantes indígenas é São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas; São Paulo está em segundo lugar - conforte o Censo de 2010 - com 12.977 indígenas. Pernambuco vem logo em seguida, sendo Pesqueira, no interior do estado, a terceira cidade do Brasil com maior quantitativo de indígenas: 9.335. Dentro do estado de Pernambuco, Recife, a capital, é segunda cidade com maior contingente populacional de pessoas nativas vivendo no município.


As migrações não são apenas um fenômeno do presente. No passado, os indígenas foram forçados a deixar suas terras devido as perdas de seus territórios tradicionais por conflitos com fazendeiros, carência de terras produtivas, falta de trabalho e questões climáticas. Atualmente, o ingresso na universidade, oportunidades de trabalhos com melhor remuneração e acesso a melhores serviços de saúde são alguns dos fatores da presença indígena na cidade.



Migrações para a cidade


A imagem de degeneração dos grupos indígenas foi reforçada quando os nativos fugiam das violências, sobretudo no século XIX. Essa fuga foi orientada para a cidade e foi motivo, também, para o discurso da mestiçagem e a legitimação das invasões e conflitos em torno dos territórios ocupados e habitados pelos indígenas.

As várias imagens acerca dos indígenas a partir de meados do século XIX estiveram relacionadas com os subterfúgios, eufemismos e argumentos sutis utilizados para legitimação das invasões e esbulhos das terras indígenas Edson Silva - pesquisador da temática indígena, professor titular de História no Colégio de Aplicação (UFPE)

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As motivações climáticas, a exemplo da seca no Semiárido pernambucano, também interferiram nas dinâmicas de vida dos indígenas que hoje vivem em Recife. João Luiz da Silva Vieira (21 anos), indígena Xukuru do Ororubá, levanta as questões que trouxeram seus familiares até o contexto da cidade, na capital de Pernambuco. "Eu já nasci na RMR, meu pai veio em 1971 e minha mãe em 1992. Meu pai veio por causa da seca, retornando alguns anos depois. Porém ele depois veio para Recife em 1976, dessa vez foi em definitivo, indo a Pesqueira apenas para visitar familiares", conta João ao detalhar que, quando chegaram, sua mãe conseguiu um emprego de empregada doméstica garantindo a continuidade da família na cidade.


Quando você assume práticas não indígenas, você vai ser negado. Bastava você aprender a ler, a escrever, a ter posses, você deixava de ser indígena José Lauro Júnior - indígena em Recife
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Para o indígena Karijó, José Lauro de Carvalho Guimarães Junior (37), o deslocamento aconteceu por violências físicas. Com o intuito de evitar mais mortes, os indígenas da sua família se dispersaram, o que motivou a vinda para Recife para morar no bairro da Imbiribeira, para depois mudar-se para o Ipsep. "Onde meus bisavós moravam fica entre Taquaritinha e Vertentes. É uma região onde eles chamam de Taquara - Serra de Taquara. Era uma região onde eles plantavam, faziam farinha, tinha casa de reza. Por conta de conflitos com fazendeiros, com posseiro que tinha lá, meu bisavô -- que era uma liderança lá na região -- foi assassinado. Junto com meu tio-avô minha família migrou justamente pela pressão de conflitos lá e pela falta de perspectiva com relação aos filhos", relata o indígena. Sem terras para plantar, Lauro e demais familiares vieram para Recife para morar em lotes de terras distribuídos pelo governo de Pernambuco na década de 1970.


O fluxo para a cidade levou o indígena Karijó a se reconhecer, primeiramente, como “descendente” e, após, como de origem Karijó. "Eu também me via como descendente, mas com o decorrer do tempo, com a abertura de políticas na universidade e com a minha percepção de que a cultura é um fluxo em constante modificação, eu também me vejo como indígena, a partir do resgate histórico da minha família", esclarece o Karijó. Lauro observa que muitas pessoas não sabem que são indígenas por não terem acesso a sua história. Para ele, as reflexões na universidade ajudam aos indígenas a se compreender como nativos e abandonarem o discurso de assimilação quando inseridos na cidade. "Quando você sai da aldeia, você deixa de ser indígena. Quando você assume práticas não indígenas, você vai ser negado. Bastava você aprender a ler, a escrever, a ter posses, você deixava de ser indígena", acentua Lauro dizendo que a escola precisa alterar seu modo de compreender e ler os povos nativos além do olhar exótico.


O povo de Lauro se denomina, atualmente, como Fulni-ô. As limitações de pertencimento étnico fazem com que o indígena só possa se afirmar como Fulni-ô quando a relação com a comunidade de origem for totalmente reestabelecida. O indígena reconhece que a organização sociopolítica do seu povo requer precauções para que ele se reconheça como Fulni-ô, por isso a necessidade de contato com as lideranças na cidade de Águas Belas, em Pernambuco. Lauro reclama que a dificuldade para se reconhecer como indígena deve-se a educação a qual teve acesso.


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As fontes ouvidas declararam que costumam ser confundidas com a massa da população, seja na cidade seja nos espaços onde esses indígenas construíram outras relações. "Assim como se tornar mestiço não nos levou a deixar a identidade étnica, estar na cidade não faz com que nós indígenas também deixemos de ser indígenas", defende Lauro ao falar sobre os seus pares, que vivenciaram a mesma trajetória histórica.


As motivações para deslocamentos e migração são vastas. Os casos de Gabriela, Lauro e de João exemplificam apenas dois recortes de história vivenciada pelos nativos. Os processos de ocupação da cidade por esses indígenas são executados de várias maneiras a partir da percepção dos indígenas e de suas cosmologias, o que é impossível falar de uma situação geral de urbanidade vivenciada pelos povos nativos.


Em pesquisa recente (2019), Edson Silva analisa a percepção dos contextos complexos de indígenas na cidade e busca compreender como os representantes do governo e da administração pública reconhecem as afirmações da identidade em contexto urbano. "Recife aplica políticas públicas étnicas e diferenciadas, no reconhecimento das violências e migrações muitas vezes forçadas dos indígenas para o contexto urbano?", questiona a pesquisa.


Políticas públicas para indígenas na cidade?


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De acordo com dados da Divisão de População do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (Desa), a população mundial poderá crescer em 2 bilhões nos próximos 30 anos. Isto é, até 2050, a prospecção é de que a população mundial chegue a 9,7 bilhões de pessoas. No Brasil, os dados do IBGE (censo 2010) sobre a Taxa de Urbanização das Regiões Brasileiras definem que 84,36% das regiões no País já é urbanizada, podendo chegar a 91% nos próximos anos. A urbanização é um processo crescente e tem relações diretas com as Terras Indígenas, impactando povos como Yawanawa, no Acre; Fulni-ô, em Pernambuco; Ticuna, no Amazonas, Potiguara, na Paraíba; entre tantos outros povos que vivem uma relação estreita com a cidade, seja no fluxo até as áreas urbanas municipalizadas ou na expansão das cidades para dentro das Terras Indígenas (TI).


Na cidade de São Paulo, outro exemplo onde a presença indígena é intensa, os dados da Comissão Pró-índio de São Paulo (2005) definem que grande parte da população indígena presente do município é proveniente do Nordeste, onde citam povos como os Pankararu, os Fulni-ô, os Pankararé, os Atikum, os Kariri-Xocó, os Xucuru, os Potiguara e os Pataxó. O mesmo relatório também afirma que o Nordeste foi uma das regiões onde os povos indígenas sofreram a maior perda e redução de seus territórios tradicionais. As terras destas etnias estão localizadas, em sua maioria, na região do semiárido nordestino, onde há problemas socioambientais. Após conseguirem regularizar suas terras depois de 30 anos, elas encontram devastadas e degradadas. Com isso, a ida dessas etnias para São Paulo foi e continua sendo muito comum, afim de experimentar novas oportunidades.


Estreitando os dados para Recife, os números já defasados do Censo do IBGE de 2010 demarcam a presença de 3.665 índios na cidade, equivalente a 0,24% da população total da capital pernambucana. A partir dos números, a reportagem buscou entender qual a relação desses indígenas com as políticas públicas da cidade.


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A esfera Federal é a responsável por instituir políticas para indígenas, por meio da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Entretanto não existe nenhuma restrição para atuação nos níveis Estadual e Municipal. A existência ou inexistência de políticas públicas na cidade pode demonstrar o nível de sensibilidade que o Estado e o Município tem ao tratar de ações para indígenas. Por conta disso, fomos atrás dos representantes da administração pública da Prefeitura de Recife, vinculados à Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SDSDH) e a relação da pasta com os indígenas e as políticas públicas na cidade.


A secretaria não tem nenhum histórico de ações com indígenas, não. Maria Conceição - Chefe de Divisão de Igualdade Racial

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Na ocasião, a Secretaria direcionou para a Gerência de Igualdade Racial do município, que também é responsável pelos assuntos da questão étnica. Foram entrevistadas duas representantes da Secretaria, a Diretora de Igualdade Racial, Girlana Diniz, e Maria da Conceição Costa, chefe da divisão de Igualdade Racial, ambas da gestão de 2017/2020. As duas representantes apresentaram um panorama administrativo do município em torno da garantia de políticas que respeitem os Direitos Humanos com ênfase para debates étnicos dentro da pasta.


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Tanto a Constituição de 1988 como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos indígenas e Tribais não vinculam ou criam condições para que o exercício dos direitos indígenas seja atrelado a um território específico. Apesar disso, na prática, quase todas as políticas públicas locais destinadas à população indígena estão atreladas à "situação de aldeamento".


A pesquisa Índios no Recife Atual, desenvolvida no Colégio de Aplicação (CAp) por Edson Silva, pesquisador da temática indígena em Pernambuco, aponta que há uma condição de “isolamento” pela não abrangência das políticas públicas à indígenas habitantes na cidade. A pesquisa destaca que o isolamento acontece "quando não se fala ou coloca-se fora do regime de visibilidade dos olhares dos detentores das políticas a condição de humanidade e, nesse caso, do atendimento aos serviços fundamentais à manutenção da vida dos indígenas em contexto urbano".


De acordo com a Chefe de Divisão de Igualdade Racial, Maria da Conceição Costa, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos, "a secretaria não tem nenhum histórico de ações com indígenas, não. Antes dessa gestão, não existe nenhum registro, porque quando estávamos no [Governo] do Estado, nós acompanhávamos ações do município também, em relação à igualdade racial, debates com povos ciganos. Chegamos até a fazer um encontro. Nas pré-conferências tivemos um momento de encontro com a população que era de povos tradicionais, mas eram os ciganos e tivemos um diálogo com os judeus e mulçumanos, mas não chegou aos povos indígenas.


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A condição para a inexistência de políticas públicas aos indígenas reforça o caráter homogeneizador de pensar populações originárias. Pensar a superação da visão generalista pela qual os indígenas são compreendidos foi levantada durante a entrevista com a SDSDH. A Secretaria demonstrou interesse em ser mais efetiva e mais direta nas políticas, mas reconhece que a falta de pessoal para abordar a temática é pouca diante da complexidade da questão.


A política pública nunca enxerga o que não chega a ela, [...] a sociedade tem que se organizar pra cobrar que a gestão pública responda pela sua necessidade Maria Conceição - Chefe de Divisão de Igualdade Racial

Os representantes da administração pública sentem falta de dados exatos e descritivos sobre a presença indígena na cidade, sobretudo na Região Metropolitana do Recife [RMR), situação também enfrentada pelo caso da cidade de São Paulo, que "por não haver dados numéricos específicos sobre cada uma das populações indígenas na cidade, reforça-se o estereótipo homogeneizador com que a sociedade olha para a população indígena”, ressalta pesquisa "A cidade como local de afirmação dos direitos indígenas", da Comissão Pró-índio de São Paulo (CPI).


A justificativa pela pouca abordagem da temática indígena no poder Municipal é descrito como a falta de “provocação” dos indígenas habitantes no contexto urbano, que não chegam até a Secretaria Municipal no Recife para cobrar políticas públicas diferenciadas. "Essa coisa da política pública apresenta-se como possível, como disponível, mas ela precisa ser provocada e ela não tem como organizar os povos indígenas, os indígenas do recife. Ela precisa que eles nos procurem, nos provoque para a política pública pra aí ser efetivada. A política pública nunca enxerga o que não chega a ela, porque o estado não pode organizar a sociedade; é o contrário, a sociedade tem que se organizar pra cobrar que a gestão pública responda pela sua necessidade", relata a representante da Gerência de Igualdade Racial.


João Luiz, questionado sobre a fala da Secretaria de Direitos Humanos, respondeu que os representantes públicos fogem da sua responsabilidade. "O setor de Direitos Humanos mais uma vez estão fugindo da responsabilidade de tratar das questões indígenas. O estado foge da obrigação de servir à população. É uma ideia de se isentar da sua responsabilidade. Então quer dizer que a população tem de ficar mendigando por algo que o estado deveria oferecer, porque é uma lei é sua obrigação?", questiona o indígena Xukuru do Ororubá ao reforçar que a postura da SDSH só mostra como os "governantes" tratam os índios na cidade: "são invisíveis - por isso a necessidade de aparecer para ter seus direitos garantidos".

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Ter indígenas vivenciando as realidades da cidade condiciona a maiores reflexões por parte dos representantes da administração pública, principalmente ações mais práticas e efetivas que superem a "reduzida comemoração de datas festivas do calendário anual", apontado por Lauro.


Faltam dados mais concretos da presença de nativos na cidade, para que se compreenda a situação enfrentada pelos indígenas. As vivências dos povos originários na cidade não é uma situação isolada, mas facilmente relacionada aos vários grupos sociais - camponesas(es), quilombolas, pescadoras(es), etc - que buscam no contexto da "modernidade" ofertada pela cidade uma condição de vida melhor, principalmente de acesso à serviços básicos garantidos.


Gersem Luciano - indígena Baniwa, pesquisador e professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) - defende que a cidadania para povos indígenas deve ser levada em consideração pelas especificidades dos povos. O teórico chama essa experiência de "cidadania diferenciada", que estaria mais próximo da cidadania plena.


Pelos relatos dos indígenas em Recife, os povos na cidade estão distantes de uma política que coloque no centro do debate os direitos indígenas; estão distante, sobretudo, da efetivamente da cidadania plena. Todas as problemáticas levantadas sugerem um exercício da cidadania na cidade sem a necessidade de que os indígenas deixem de ser quem são para gozar de direitos.


 
 
 

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