Vivência
- Tarisson Nawa
- 6 de out. de 2019
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de jun. de 2020
Indígena Potiguara, Andriele Rodrigues fala sobre sua vivência na aldeia em Baía da Traição, na Paraíba

Guarda-roupa com espelho nas portas, criado-mudo com livros em empilhados, cama de solteiro posicionada no centro – na parede branca de alvenaria, retrato de uma menina formada no jardim de infância. A descrição é do quarto de Andriele, 16 anos, indígena potiguara acompanhada pela reportagem durante um final de semana; a única referência indígena no lugar de estudo da adolescente são os grafismos na colcha que cobre a cama de solteiro. A menina Potiguara ainda tira dentre seus seus livros empilhados um material na língua Tupi -- ensinado nos períodos iniciais da formação – e finaliza dizendo “é somente isso que tenho”.
Pode parecer estranho, mas ainda em 2019, Andriele é bombardeada com perguntas do tipo: “vocês moram em malocas?” ou, mais constrangedora ainda, “como vocês fazem para ir ao banheiro?”. Andriele franze o rosto inconformada com as perguntas, mas infelizmente, segundo a adolescente, ainda é a situação vivenciada por pessoas que desconhecem a história do Brasil e, sobretudo, a situação indígena na atualidade. O povo que Andriele faz parte foi um dos primeiros a entrar em contato com o colonizador português. Anos de contato fizeram com que hoje o território se tornasse uma aldeia urbana.

Meu quarto minhas regras. Andriele usa a cama como lugar de estudo para se preparar para a rotina de provas que vai enfrentar no primeiro bimestre do ano
A educação, por conta dessas trocas com os não-índios, carrega as mesmas disciplinas do currículo comum estudado pelos que moram na cidade e por Andriele, que mora na aldeia. A indígena está se preparando para a rotina de provas na escola e para os vestibulares a serem enfrentados no final do ano. Ela está no último ano do Ensino Médio e pretende cursar psicologia ou engenharia.
Com uma rotina comum a todas as meninas da sua idade, ela acorda cedo para ajudar a mãe nos afazeres, tira um horário da manhã para estudar e vai à escola à tarde. Andriele estuda desde criança na aldeia onde mora – Aldeia do Forte, em Baía da Traição. Nas horas vagas, a menina não deixa de se divertir com as músicas preferidas, sobretudo internacionais. Diferente do que pensam os “brancos” – como ela mesmo nomeia os não indígenas – “eu não vivo escutando música indígena de flauta ou sons da mata. A potiguara combate o estereótipo atrelado a sua identidade e diz se sentir incomoda com todo o contexto de preconceito: “a ideias que as pessoas têm é de um indígena nu – não com as roupas que a gente veste e usando o celular”, declara a jovem. Apesar dos incômodos, Andriele prefere rir ao invés de chorar.
Questionada sobre a forma como combateria o preconceito e a falta de informação quando as pessoas a abordam com visões atrasadas dos indígenas, a jovem prontamente responde: “eu falo um pouco sobre a história do meu povo, sobre a invasão e sobre como os indígenas foram estratégicos ao se mesclar com a sociedade para poderem permanecer vivos”, destaca.
As redes sociais nunca foram motivo para Andriele perder o pertencimento ao seu povo. Ela diz que a vivência na internet veio para aproximar as pessoas e, inclusive, é usada como ferramenta para a jovem conversar com seus parentes da aldeia sobre trabalhos e atividades da escola: “se não fosse as redes sociais, eu iria precisar ir pra casa dos meus amigos”

O uso das ferramentas digitais tem sido cada vez mais frequente entre os indígenas e Andriele sabe disso. O seu povo tem uma articulação de jovens e adolescentes que une tecnologia e conhecimentos indígenas. A OJIP (Organização dos Jovens Indígenas Potiguara) mantém uma articulação da qual a adolescente faz parte. Esse ano, a OJIP reuniu os jovens em abril – mês em que é comemorado o Dia do Índio
A ideia que as pessoas têm é de um indígena nu – não com as roupas que a gente veste e usando celular

O principal tema debatido era a presença indígena na universidade. Andriele conta que está ansiosa para o momento de entrada na universidade, porque está “impaciente” quando pensa sobre o Ensino Superior.
Realidade para muitos indígenas brasileiros após a Lei de Cotas, a presença dos indígenas nos corredores da universidade é frequente. Mais de 44 mil integrantes de etnias do Brasil estão nos bancos das academias, de acordo com o Censo do Ensino Superior de 2016 do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).
A jovem potiguara entende bem o que isso representa para os seus irmãos de outras etnias e vê com otimismo a atual situação dos indígenas no Ensino Superior. “Hoje existem indígenas formados, na universidade. Isso mostra que nós podemos nos formar mesmo sendo indígena e mostrar que nós temos potencial de ir muito além. Essa presença na universidade colabora muito pra aceitação do indígena na sociedade”, frisa Andriele

Redes sociais. Andriele usa o WhatsApp para conversar com parentes indígenas da escola. Os trabalhos são encaminhados com uso das redes
Com uma voz politizada, a adolescente diz que o preconceito era muito maior uns anos atrás, mas que após a luta com a caneta e menos com derramamento de sangue fez com que as pessoas passassem a respeitar mais os indígenas, podendo vê-los não só na universidade, mas usando “vestimentas normais, podendo usar celular, possuir um carro, viajar para diversos lugares”.
O encontro da OJIP, além de ter debatido os enfrentamentos dos indígenas universitários que vivem dentro da aldeia, pretendeu ser uma ponte de ensinamentos para os potiguara que estão em fase de transição: do ensino médio para a universidade.

Chê Tupã, chê Tupã, chê Potiguara. O cocar de pena é um dos adereços que Andriele pretende carregar dentro da bolsa quando entrar na universidade.
Terceiro ano é apenas o começo para embarcar na universidade
Ainda de acordo com o INEP, essa transição pela qual Andriele está passando aumentou de 2010 a 2016. Segundo o órgão, os indígenas que passam pelo vestibular/ENEM e conseguem aprovação aumentou 512% entre os anos analisados pela pesquisa. Perguntada sobre o que representa esse último ano para a formação política e cidadã, Andriele acredita no direcionamento de novos rumos não só para sua vida, mas para a visão dos brancos sobre os indígenas. “O terceiro ano é apenar um começo para embarcar na universidade. É como se fosse um novo mundo que vai se abrir. Assim como os brancos, eu e outros parentes também podemos alcançar o lugar que o branco ocupa há anos e mudar a visão deles lá dentro”, finaliza a adolescente.

** Reportagem especial produzida para a Revista Experimental ISA da disciplina Redação Jornalística 4, ofertada no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco, sob orientação de Isaltina Gomes e Carolina Vasconcelos
*** Texto e imagens por Tarisson Nawa



Comentários