Sexualidades fora do padrão nas aldeias no Nordeste: indígenas gays e bissexuais
- Tarisson Nawa
- 6 de out. de 2019
- 8 min de leitura
Atualizado: 6 de jun. de 2020
A mentalidade colonial ainda interfere na forma como os indígenas afirmam sua sexualidade, mas pode ser superada com as atuais propostas da juventude indígena.

Ser indígena no Brasil é um desafio. Se o reconhecimento é negado para os nativos, a invisibilidade é ainda mais forte para os indígenas do Nordeste. Índio, nordestino e gay ou bissexual nem se fala. Resquícios da mentalidade colonial colocam no anonimato a identidade de gênero desses sujeitos, que só piora quando se relaciona com a à identidade étnica.
Da quantidade de povos indígenas do Nordeste, A a reportagem ouviu quatro indígenas de etnias e estados diferentes. Como é a vivência de um indivíduo cuja sexualidade é mitificada? Com temática ainda escondida das pautas do movimento indígena nacional,os nativos ouvidos ─ todos engajados na mobilização política dentro do povo ─, falam de avanços e dificuldades pelas quais passam dentro e fora da comunidade.
Avanços e retrocessos no debate da sexualidade
Dioclécio Costa, conhecido pelo nome indígena y’ ra’y (filho das águas), 24 anos, é natural do Rio Grande do Norte (RN). Do povo Mendonça, um desmembramento do povo Potiguara da Paraíba, Dioclécio se tornou liderança cedo. Hoje, o jovem já é cacique e direciona mais de 840 indígenas da sua aldeia. Para ele, é difícil falar da questão de sexualidade no contexto do povo. Ele acredita que todos de casa sabem da sua orientação homossexual, mas que ele nunca chegou a abordar os familiares para se assumir: “Todo mundo aqui em casa sabe, mas eu nunca falei, porque eu morei fora da aldeia desde os 14 anos. Eu fui em Natal (RN) pra estudar e, por volta dos 17 anos, eu voltei e o convívio com a família permaneceu bom.”
Morar fora de casa cedo fez com que Dioclécio não precisasse se assumir dentro do lar. Resolvido com sua vida sexual, o jovem não teve dificuldades na aceitação. Já formado em Psicopedagogia, o cacique chegou a manter relações com seus parentes indígenas sem olhares tortuosos: “aqui na comunidade a questão da sexualidade é tratada como normal”.
A situação de Dioclécio é um ponto fora da curva para a realidade de tantos outros povos. Encarcerados pelo modelo de relações heterossexuais, muitos indígenas evitam se assumir para não passar pela reprovação do povo. Foi o que aconteceu com Francisco, nome anônimo dado ao indígena que preferiu não se identificar.
Francisco, 20 anos, pertencente a um povo do Sertão de Pernambuco, fala inconformado sobre a mentalidade dos seus parentes e acrescenta o motivo da sua falta de afirmação: “tendo seu povo vendo o gay como algo anormal – xinga, fala palavrões, diz que não aceita – é difícil. Nessa situação, tem que se tomar uma decisão, de se assumir ou não se assumir, eu tomei a decisão de não me assumir”.
Você ser índio, nordestino, ter características negras e ser gay num país, estado e cidade onde o normal é casal hétero no não é fácil
O indígena, que também é estudante universitário, acredita numa interseccionalidade de fatores que fazem pessoas como ele sofrer tantos preconceitos. “Você ser índio, nordestino, ter características negras e ser gay, imagine o quanto de preconceito, discriminação e homofobia você não sofreria num país, estado e cidade onde, para as pessoas, o normal é casal hétero: homem e mulher. A sociedade ainda não tem o conhecimento que deveria ter sobre a comunidade LGBTQ+.”
Francisco é a favor de uma educação inclusiva que respeite a diversidade. Para ele, a realidade de preconceitos contra as identidades de gênero e étnico-raciais brasileiras poderia mudar com a inserção da temática da sexualidade nas escolas. A pretensão de Francisco se aproxima das atividades do Youtuber e criador do Canal Papo de Índio, Jefferson Niotxaru, do povo Pataxó, que aos 27 anos pretende superar o desconhecimento das sexualidades indígenas com uso de ferramentas da internet. Jefferson também integra o movimento de estudantes indígenas dentro da Universidade Federal do Sul da Bahia, em Porto Seguro, onde estuda a Licenciatura Interdisciplinar em Matemática, Computação e suas tecnologias.
O baiano e bissexual assumido acredita que esses espaços devem ser usados para incorporação do debate das questões de gênero. As atividades de Jefferson, que só começou a se abrir para a temática após os debates dentro da universidade, estão voltadas à mobilização e aos processos de luta do movimento indígena.
Para a reportagem, o gerenciador do canal Papo de índio diz que seu maior medo após se assumir foi perder a liderança da juventude. Esse medo está atrelado ao desconhecimento do povo sobre a temática. “No nosso povo não é muito discutido, é invisibilizada a questão dos LGBTQ nas aldeias. Povos como os Tupinambás, Pataxó Hãhãhã – do sul da Bahia – a questão é mais presente”, conta Jefferson. Ele defende que se assumir pode fazer com que outros índios gays e bissexuais, por meio da representatividade, também saiam do armário e ocupem espaços de liderança.
A realidade buscada por Jefferson não está longe de se concretizar. Dentro do movimento dos povos indígenas, de acordo com a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), há uma instância de organização voltada para jovens onde há presença de ativistas gays. É o caso de Erisvan Bone, jornalista e índio Guajajara, do Maranhão.
Conhecido pelo nome indígena Itaynwa Xahã (Itaynwa – pedra preciosa; Xahã - Grande Pássaro Noturno do Pantanal), desde 2011 o jovem de 28 anos está na frente da mobilização para o protagonismo dos jovens e só passou a questionar-se sobre a sexualidade quando entrou para o curso de jornalismo na Universidade Federal do Maranhão, de onde já se formou.
Em 2017, Erisvan puxou o debate apagado da sexualidade nas pautas do movimento nacional. No Encontro Nacional de estudantes Indígenas (ENEI), a liderança Guajajara acentuou a temática no intuito de gerar uma reflexão nas lideranças sobre a cultura homofóbica na qual estão mergulhados, seja dentro ou fora da aldeia. “Nós sofremos preconceito duplo – tanto por ser indígenas quanto por ser LGBT. Dentro do meu povo houve estranhamento quando os indígenas gays se assumiram. A aceitação não foi da noite pro dia. Imagino que em alguns povos a aceitação ainda seja um obstáculo. A temática ainda é recente mas precisamos existir e resistir.”, conta o jornalista com bastante afinco.
Falar de índios gays, para a liderança, é reconhecer que sexualidadeoutras diferenças existem além das já presentes entre os indígenas – diferenças não apenas étnico-raciais, mas de gênero.
Sabendo que cada povo apresenta particularidades, superar os preconceitos, equívocos e a homofobia só poderá acontecer olhando para cada particularidade no intuito de encontrar estratégias que dêem conta da complexidade de cada povo; e, para além disso, saber as origens da cultura de homofobia que os próprios indígenas estão sujeitos.
Sexualidade indígena em foco na academia
De acordo com o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE), existem no Brasil 305 povos. Desse quantitativo, todas sociedades indígenas se diferenciam um das outras, apresentando experiências, vivências, crenças, simbologias, significados, interpretações, pontos de vista, rituais e pudores singulares, característicos das suas práticas e modo de ver o mundo. As práticas sexuais e a orientação do desejo também irão diferir de um povo para outro.
Em 2015, o antropólogo Estevão Rafael Fernandez defendeu na UNB a tese sobre a colonização das sexualidades indígenas. No texto, o autor traz uma série de relatos sobre como algumas etnias conviviam com a homossexualidade entre indígenas homens e mulheres, o que posteriormente se tornou livro: Existe índio gay? Colonialidade das sexualidades indígenas (2016)
A estudante de Direito Nicole Maciel, graduanda pela Universidade Vale do Itajaí, em Santa Catarina, estuda a mesma temática que Estevão para defender a pesquisa inédita de Trabalho de Conclusão de Curso na área jurídica, intitulado Homoafetividade: um estudo jurídico-social acerca das relações homoafetivas indígenas. Maciel descreve a sexualidade indígena como moldada a partir da religião. “A sexualidade, como um todo, era muito velada pela igreja. A igreja era o poder central e tudo era considerado pecado”. Para ela, a homossexualidade sempre existiu, mas o preconceito somente apareceu com o contato com o “homem branco”. Ela descreve que o movimento pelo reconhecimento da homossexualidade indígena nas aldeias ainda estão no processo de institucionalização.
Há um equívoco social, identificado pela pesquisa da estudante, ao pensar que ser índio homossexual geraria perda das características culturais. Esse problema do imaginário social, para a estudante, faz com que haja grande esforço do movimento pelo reconhecimento da homossexualidade indígena na tentativa de descaracterizar essa imagem.
O preconceito existe, de acordo com Nicole, dentro e fora da aldeia. Mesmo que a consequência não seja a expulsão, muitos indígenas se sentem mal e vão embora numa tentativa de fugir de casos de opressão. Fora do seu espaço de convivência, o lugar destinado é a marginalidade social: prostituição, alguns casos de suicídio e aqueles que contraem doenças sexuais, mantendo-os em situações de risco.
O direito, nesse sentido, de acordo com Nicole, poderia contribuir com a criminalização da homofobia, o que afetaria diretamente os indígenas. Entretanto, a jurisdição não pode ser vista como a primeira opção para mudar a realidade de indígenas homossexuais, que, de acordo com Nicole, só é possível reverter a situação com a promoção de políticas públicas que envolvam oficinas e debates para superação da mentalidade de preconceito que os próprios indígenas reproduzem.
O professor Edson Silva, do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco (CAp/UFPE) apresenta sua percepção sobre a questão da sexualidade dentro das aldeias com os indígenas com os quais convive há cerca de trinta anos. Edson pesquisa os índios Xukuru do Ororubá, de Pesqueira e Poção no Semiárido pernambucano e, apesar de nunca ter visto alguma situação de preconceito explícito, ele acredita que a mentalidade religiosa colabora para o machismo e para a homofobia velados, fazendo com que os indígenas não se sintam à vontade para assumir sua sexualidade.
No caso específico do Nordeste, os aldeamentos foram formados pela forte presença da igreja católica romana e o serviço missionário. Por conta dessa realidade histórica, a penetração das questões de gênero acontece de forma muito lenta entre os indígenas nordestinos, como destaca Edson. “O debate sobre a homossexualidade nas aldeias acontece de forma muito tímida entre os jovens. Sem citar nomes de povos, existem etnias que não aceitam o debate dessa questão – sabem da existência de indígenas gays, mas há um arraigado preconceito que acredito ser produto da colonização ao qual esses grupos foram impostos.”
O pesquisador acrescenta que a discussão de gênero é uma das últimas barreiras na sociedade brasileira que estamos enfrentando hoje, por isso, o gênero se tornou um dos últimos tabus.
Edson finaliza dizendo que o não reconhecimento das sexualidades indígenas está relacionado à naturalização do preconceito oriundo da colonização. Esse período da história brasileira impactou as aldeias e gerou violências na forma como os indígenas se afirmavam e mantinham relações sexuais.
Histórico de violência
O índio brasileiro, desde o período de construção da identidade nacional, foi mitificado. Suas práticas, “exóticas”, distanciavam-se das consideradas aceitáveis pelo Português.
Não só a cultura indígena foi estranhada pelo olhar europeu, mas o corpo foi exotizado - a forma como os indígenas utilizam seus corpos e como mantinham relações era avessa ao padrão hétero do colonizador. O choque do contato gerou conflito violento em torno da simbologia que o corpo indígena e sua sexualidade poderiam manifestar, levando ao combate dos seus “bestiais costumes.”
A primeira repreensão à sexualidade dos indígenas aconteceu em 1613. De acordo com documentos históricos, nessa época houve a primeira pessoa indígena vitimada por apresentar uma sexualidade considerada “desviante”.
Ocorrido no Maranhão, um indígena foi amarrado na boca de um canhão, que depois foi disparado, separando-lhes os membros. Violência causada por conta de uma moral heterossexista religiosa, as práticas que desviavam das relações heterossexuais eram consideravas depravação. Por conta disso, a sexualidade de indígenas gays, lésbicas e bissexuais foi um obstáculo para alcançar o status de civilizado.
Pecado nefando, sodomia, pederastia, depravação foram alguns dos nomes dados às práticas sexuais das várias etnias do Nordeste do país. Os padres católicos foram os primeiros interventores; posteriormente, os militares trazem um relato de desvio da “lei da natureza”. Os etnólogos, na posteridade, fazem relatos das observações feitas nos povos e descrevem distinções entre as etnias no que se refere à sexualidade.
O modelo de colonização, atrelado a igreja Católica Romana e a um cristianismo medieval português, era cheio de regras, normas, preceitos. Esse debate da sexualidade como um todo nunca foi discutido. Atualmente, a temática ganhou mais destaque com a juventude. Seja com canais no YouTube seja tencionando o próprio movimento indígena, os jovens tentam inserir a temática para que os parentes ainda presos à uma mentalidade retrógrada possa dar espaço para a solidariedade.



Comentários